Meneses J, Sousa B, Teixeira V, Oliveira A. Além da Dor: estratégias integradas de Saúde Ocupacional. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2025; 19: esub0513. DOI: 10.31252/RPSO.26.01.2025
BEYOND PAIN: INTEGRATED OCCUPATIONAL HEALTH STRATEGIES
Artigo: Caso Clínico
Autores: Meneses J(1), Sousa B(2), Teixeira V(3), Oliveira A(4).
RESUMO
Introdução
A cefaleia é uma perturbação neurológica comum e incapacitante, afetando cerca de 52% da população mundial anualmente, com maior prevalência em mulheres. Apesar da sua ubiquidade, o seu impacto na saúde pública é frequentemente subestimado, especialmente no contexto laboral.
O trabalho por turnos emerge como um potencial fator de risco ocupacional, associado a uma maior prevalência de cefaleias inespecíficas e enxaquecas, bem como a um risco aumentado de enxaqueca crónica e maior incapacidade.
O caso apresentado pretende destacar a importância de considerar os fatores ocupacionais na gestão das cefaleias, sugerindo que a mitigação dos desencadeantes laborais pode ser um complemento valioso à terapêutica farmacológica no tratamento desta condição.
Caso clínico
Apresenta-se o caso de uma enfermeira de 27 anos com história de cefaleias desde os 16 anos, inicialmente bem controlada com ibuprofeno.
Há um ano, verificou-se um agravamento significativo do quadro, com aumento da frequência e intensidade das crises, acompanhadas de sintomatologia neurovegetativa que afetavam o seu desempenho laboral.
O acompanhamento em neurologia confirmou o agravamento, tendo os exames de imagem descartado alterações estruturais cerebrais que justificassem a condição.
Apesar de múltiplas estratégias de terapêutica farmacológica, não obteve resposta clínica completamente satisfatória, pelo que solicitou apoio à medicina do trabalho para controlo dos desencadeantes laborais. Daqui resultou a atribuição de um horário de trabalho regular, com redução do trabalho noturno e horas suplementares. Três meses após a implementação destas medidas, observava-se uma redução na frequência das crises e diminuição do uso de medicação, assim como redução do absentismo laboral.
Discussão / Conclusão
O caso clínico apresentado ilustra a importância de uma abordagem multidisciplinar na gestão dos casos de cefaleia com desencadeantes laborais. Estratégias como maior suporte social, controlo sobre tarefas laborais e espaços de trabalho adequados podem aumentar a produtividade dos trabalhadores afetados.
No caso apresentado, a adaptação do horário de trabalho resultou numa redução da frequência e intensidade das crises, facto reforçado pela diminuição objetivada do absentismo laboral.
Conclui-se que, além da terapêutica farmacológica, as modificações no estilo de vida e no ambiente de trabalho são essenciais para o controlo eficaz das cefaleias.
Por fim, recomenda-se a realização de estudos mais amplos sobre intervenções ocupacionais e o desenvolvimento de protocolos específicos para a gestão desta condição nos locais de trabalho.
Palavras-chave: Cefaleia, Medicina do Trabalho, Risco laboral, Prevenção, Saúde Ocupacional.
ABSTRACT
Introduction
Headache is a common and disabling neurological disorder, affecting approximately 52% of the global population annually, with a higher prevalence in women. Despite its ubiquity, its impact on public health is often underestimated, especially in the workplace context.
Shift work emerges as a potential occupational risk factor, associated with a higher prevalence of non-specific headaches and migraines, as well as an increased risk of chronic migraine and greater disability.
The presented case aims to highlight the importance of considering occupational factors in headache management, suggesting that mitigating workplace triggers can be a valuable complement to pharmacological therapy in treating this condition.
Case report
We present the case of a 27-year-old nurse with a history of headaches since the age of 16. Initially, her condition was well-controlled with ibuprofen.
A year ago, a significant worsening of her condition was observed, with an increase in the frequency and intensity of episodes, accompanied by neurovegetative symptoms that affected her work performance.
Neurological follow-up confirmed the worsening, and imaging tests ruled out structural brain changes that could explain the condition.
Despite multiple pharmacological therapeutic strategies, a completely satisfactory clinical response was not achieved. As a result, she requested support from occupational medicine to control workplace triggers. This led to the assignment of a regular work schedule, with a reduction in night work and overtime hours. Three months after implementing these measures, a reduction in the frequency of episodes and decreased use of medication was observed, as well as a reduction in work absenteeism.
Discussion/ Conclusion
The presented clinical case illustrates the importance of a multidisciplinary approach in managing headache cases with work-related triggers. Strategies such as increased social support, control over work tasks, and appropriate workspaces can increase the productivity of affected workers.
In the presented case, the adaptation of the work schedule resulted in a reduction in the frequency and intensity of crises, a fact reinforced by the objectified decrease in workplace absenteeism.
It is concluded that, in addition to pharmacological therapy, modifications in lifestyle and work environment are essential for effective headache control.
Finally, it is recommended to conduct broader studies on occupational interventions and develop specific protocols for managing this condition in the workplace.
Key-words: Headache, Occupational Medicine, Occupational risk, Prevention, Occupational Health.
INTRODUÇÃO
A cefaleia é uma das perturbações de saúde mais comuns do sistema nervoso, podendo comprometer significativamente a qualidade de vida e conduzir à incapacidade em populações de todo o mundo (1). Apesar da sua prevalência, ubiquidade e carácter incapacitante, o seu impacto na saúde pública é frequentemente subestimado, particularmente no contexto laboral (1). Estudos recentes indicam que cerca de 52% da população mundial sofra desta condição pelo menos uma vez por ano, sendo a prevalência superior em mulheres (2) (3).
A Classificação Internacional de Cefaleias-III categoriza esta patologia em três grupos principais: primárias, onde se incluem a enxaqueca, a do tipo tensão e as trigémino-autonómicas; secundárias, atribuídas a causas como traumatismo crânio-cervical, perturbações vasculares, infeções, alterações da homeostasia ou efeitos de medicamentos; e outras, onde estão abrangidas neuropatias cranianas dolorosas e algias faciais (4).
De uma forma geral, estas não estão associadas a mortalidade significativa, sendo esta uma das razões pelas quais são pouco valorizadas (1).
Ainda assim, elas não se limitam a causar dor intensa aos seus portadores, refletindo-se também nas atividades domésticas e nos papéis sociais e familiares que estes desempenham. Afetam não só a sua qualidade de vida do ponto de vista individual, impactando também negativamente o ambiente familiar e a sociedade no geral (5) (6).
Do ponto de vista socioeconómico, os efeitos negativos também se fazem sentir, essencialmente à custa da afetação prolongada da produtividade laboral. Neste contexto o impacto é mais sentido a nível do presenteísmo, descrito como a presença no trabalho com desempenho reduzido, do que do absentismo, ou seja, a falta efetiva ao trabalho (6).
Vários fatores desencadeantes e/ou agravantes têm sido descritos na literatura. Alguns dos mais comuns são as alterações hormonais, a privação do sono, o consumo de determinados alimentos, a desidratação e o stress físico e mental (5). No contexto laboral existe associação com o stress ocupacional, a utilização prolongada de dispositivos eletrónicos, a exposição a substâncias tóxicas e micropoluentes, problemas ergonómicos e condições de trabalho específicas como a iluminação, temperatura, odores intensos ou a qualidade do ar (3).
O trabalho por turnos emerge como outro potencial fator de risco de natureza ocupacional, com estudos a indicarem uma prevalência acrescida de cefaleias inespecíficas e enxaquecas nos trabalhadores sujeitos a este regime laboral, comparativamente aos trabalhadores em horário diurno convencional (7).
Adicionalmente, parece haver associação entre o trabalho por turnos e um risco aumentado de enxaqueca crónica, bem como de incapacidade mais pronunciada das cefaleias (8).
O caso apresentado de seguida parece apoiar esta temática, procurando destacar a necessidade de considerar e mitigar os desencadeantes ocupacionais como complemento valioso à terapêutica farmacológica, e realçando a importância de abordagens personalizadas no tratamento de pessoas que sofrem desta patologia em ambiente laboral.
CASO CLÍNICO
Relata-se o caso de uma enfermeira de 27 anos, seguida em consulta de neurologia por quadro de cefaleia primária do tipo enxaqueca. Não apresentava antecedentes pessoais de relevo além de antecedentes familiares da mesma condição.
Desde os 16 anos que apresentava episódios recorrentes de cefaleia, inicialmente esporádicos e bem controlados, caracterizados por crises mensais de baixa intensidade que controlava com ibuprofeno.
O agravamento sintomatológico tornou-se mais evidente desde há um ano, com crises mais frequentes e intensas, muitas vezes acompanhadas de sintomatologia neurovegetativa complexa, nomeadamente fotofobia e episódios de náuseas que prejudicavam o seu bem-estar pessoal e condicionavam períodos de absentismo laboral.
O acompanhamento clínico em neurologia identificou um agravamento do padrão de enxaqueca, com referência a três ou mais crises por semana. O exame neurológico era normal e não apresentava alterações estruturais identificáveis em tomografia e ressonância magnética crânio-encefálicas que justificassem este agravamento.
A doente foi submetida a múltiplas estratégias terapêuticas, incluindo diferentes protocolos farmacológicos de profilaxia e tratamento agudo, sem obtenção de resposta clínica totalmente satisfatória.
Por associar o agravamento das crises com o início das atuais funções solicitou apoio à medicina do trabalho para identificação de eventuais triggers que pudessem auxiliar no controlo da doença.
Avaliada em exame ocasional foram discutidos possíveis desencadeantes presentes no posto de trabalho, sendo emitida ficha de aptidão com recomendação da atribuição de um horário de trabalho regular, com diminuição do trabalho em horário noturno e sem sobrecarga de horas suplementares, uma vez que a trabalhadora referia que muitas das crises mais incapacitantes se seguiam a dias em que trabalhava neste regime.
Ficou com reavaliação clínica a curto prazo para avaliação e eventual ajuste das medidas instituídas.
Ao fim de três meses relatava uma diminuição da frequência dos episódios de cefaleia para uma a duas vezes por semana, tendo reduzido o número de medicação para controlo sintomático. Ao mesmo tempo, verificou-se que o absentismo laboral havia diminuído.
DISCUSSÃO / CONCLUSÃO
A enxaqueca é uma doença incapacitante caracterizada por episódios recorrentes de cefaleia e atualmente não tem cura (9). Não obstante este facto, é uma condição que pode permitir uma boa qualidade de vida se devidamente orientada e tratada (9).
De forma complementar à terapêutica farmacológica direcionada, as modificações no estilo de vida (hábitos do sono, alimentação, exercício físico) e o controlo de outros fatores agravantes e desencadeantes de cefaleias são essenciais na ótica da prevenção e redução da frequência das crises (9).
Muitos destes fatores de risco estão presentes em meio laboral, sendo importante a adoção de medidas que os minimizem neste contexto.
Têm sido discutidas algumas estratégias para apoiar os trabalhadores que sofrem de cefaleia, com a evidência a sugerir o maior suporte social, o maior grau de controlo sobre as decisões e tarefas laborais, o desenho de espaços de trabalho adequados (gabinetes individuais por oposição a gabinetes coletivos, que permitam ajuste de fatores como iluminação, temperatura e ventilação) e a existência de salas de descanso nas empresas como ferramentas importantes para aumentar a produtividade dos trabalhadores com esta patologia (10).
No caso apresentado, a adaptação realizada em termos de horário de trabalho poderá ter permitido à trabalhadora estabelecer uma rotina mais regular de sono e reduzir o nível de cansaço físico e mental associado a longas jornadas de trabalho. Isto traduziu-se numa redução da frequência e intensidade dos episódios de cefaleia, que foi também percetível pela diminuição do absentismo objetivada.
O caso põe em evidência a importância de uma abordagem multidisciplinar e personalizada na orientação destes pacientes. A intervenção conjunta da medicina do trabalho e da neurologia, que combinou cuidados médicos especializados com adaptações no ambiente de trabalho, demonstrou-se fundamental para identificar e mitigar os fatores desencadeantes e assim reduzir a frequência das crises, o que sublinha a relevância das intervenções preventivas como parte integrante do tratamento desta condição.
Olhando para o futuro, seria benéfica a realização de estudos mais amplos sobre o impacto de intervenções ocupacionais no controlo das cefaleias em ambiente laboral. Além disso, o desenvolvimento de protocolos específicos para a gestão desta condição nos locais de trabalho e a promoção de políticas de saúde ocupacional orientadas para a sua prevenção poderiam contribuir para uma melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores afetados e reduzir o impacto socioeconómico e laboral que lhe está associado.
Contudo, será pertinente realçar que colocar condicionamentos relativos a turnos noturnos (situação essa que gera, pelo menos, algum desconforto a quase todos os trabalhadores), baseada em queixas subjetivas e não mensuráveis objetivamente, poderá criar situações em que, em algumas instituições, não existissem funcionários suficientes para esse horário, sem que a equipa de Saúde Ocupacional tivesse a certeza de o sintoma ser real, existir ligação de causa-efeito e/ou ser tão intenso quanto descrito, pelo que será necessário muito bom senso na colocação destas restrições.
BIBLIOGRAFIA
- World Health Organization. Atlas of headache disorders and resources in the world. Geneva: World Health Organization. 2011; 1-69.
- Stovner L, Hagen K, Linde M, Steiner T. The global prevalence of headache: an update, with analysis of the influences of methodological factors on prevalence estimates. The Journal of Headache and Pain. 2022; 23(1): 1-17. doi: 10.1186/s10194-022-01402-2.
- Magnavita N. Headache in the Workplace: Analysis of Factors Influencing Headaches in Terms of Productivity and Health. International Journal of Environmental Research and Public Health. 2022; 19(6): 3712. doi: 10.3390/ijerph19063712.
- International Headache Society. Headache Classification Committee of the International Headache Society (IHS) the International Classification of Headache Disorders, 3rd Edition. Cephalalgia. 2018; 38(1): 1–211. doi: 10.1177/0333102417738202.
- Baigi K, Stewart W. Headache and migraine: a leading cause of absenteeism. Handbook of clinical neurology. 2015; 131: 447–463. doi: 10.1016/B978-0-444-62627-1.00025-1.
- Linde M, Gustavsson A, Stovner L, Steiner T, Barré J, Katsarava Z, et al. The cost of headache disorders in Europe: the Eurolight project. European Journal of Neurology. 2011; 19(5):703–711. doi: 10.1111/j.1468-1331.2011.03612.x.
- Appel A, Török E, Jensen M, Garde A, Hansen A, Kaerlev L, et al. The longitudinal association between shift work and headache: results from the Danish PRISME cohort. International Archives of Occupational and Environmental Health. 2020; 93(5): 601–610. doi: 10.1007/s00420-019-01512-6.
- Sandoe C, Sasikumar S, Lay C, Lawler V. The Impact of Shift Work on Migraine: A Case Series and Narrative Review. Headache: The Journal of Head and Face Pain. 2019; 59(9): 1631–1640. doi: 10.1111/head.13622.
- Aguilar-Shea A, Membrilla M, Diaz-de-Teran J. Migraine review for general practice. Atención Primaria. 2022; 54(2):102208. doi: 10.1016/j.aprim.2021.102208.
- Dhaem O, Gharedaghi M, Bain P, Hettie G, Loder E, Burch R. Identification of work accommodations and interventions associated with work productivity in adults with migraine: A scoping review. Cephalalgia. 2020; 41(6): 760–773. doi: 10.1177/0333102420977852.
(1)João Meneses
Médico Interno de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. MORADA COMPLETA PARA CORRESPONDÊNCIA DOS LEITORES: Serviço de Medicina do Trabalho, Sete Fontes – São Victor, 4710-243 Braga. E-MAIL: joao.miguel.meneses@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Autor principal do artigo, realização da pesquisa bibliográfica e da redação do artigo.
(2)Bruno Sousa
Médico Interno de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Escola de Medicina da Universidade do Minho. 4710-409 Braga. E-MAIL: bruno.amaro.sousa@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Co-autoria. Revisão do manuscrito.
(3)Vânia Teixeira
Médica Interna de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. 4700-267 Braga. E-MAIL: vania.silva.teixeira@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Co-autoria. Revisão do manuscrito.
(4)Álvaro Oliveira
Responsável de Serviço e Assistente Hospitalar de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior. 4820-512 Póvoa de Lanhoso. E-MAIL: alvaro.andre.oliveira@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Co-autoria. Revisão do manuscrito.