Meneses J, Sousa B, Teixeira V, Oliveira A. Perda Auditiva Súbita após Covid-19: um caso clínico. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2025, 19: esub0510. DOI: 10.31252/RPSO.24.01.2015
SUDDEN HEARING LOSS POST COVID-19: A CLINICAL CASE
Artigo: Caso Clínico
Autores: Meneses J(1), Sousa B(2), Teixeira V(3), Oliveira A(4).
RESUMO
Introdução
A pandemia COVID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, tem representado um desafio sem precedentes para os sistemas de saúde globais. Além dos sintomas agudos provocados pela doença, tem-se observado um número crescente de pacientes que desenvolvem sequelas a longo prazo. Entre estas, os problemas auditivos têm ganho algum destaque.
Caso clínico
Relata-se o caso de uma enfermeira de 52 anos que, após contrair COVID-19 e recuperar dos sintomas iniciais, desenvolveu hipoacusia neurossensorial moderada no ouvido direito. Apesar do tratamento com corticosteróides e oxigenoterapia hiperbárica, não foi possível obter recuperação completa do quadro. A infeção provocada pelo SARS-CoV-2 e a sequela auditiva daí resultante foram participadas e aceites como doença profissional.
Discussão / Conclusão
Os profissionais de saúde, devido à sua exposição constante a pacientes infetados, estão em maior risco de contrair a COVID-19. Este caso destaca a necessidade de aumentar a consciencialização sobre as sequelas auditivas da COVID-19 e a importância de reconhecer e tratar essas condições atempadamente. Além disso, reforça a necessidade de implementação de estratégias de prevenção ocupacional que minimizem o risco biológico nas instituições de saúde.
Palavras-chave: COVID-19, Surdez neurossensorial, Sequela, Profissional de Saúde, Risco biológico, Saúde Ocupacional.
ABSTRACT
Introduction
The COVID-19 pandemic, caused by the SARS-CoV-2 virus, has posed an unprecedented challenge to global health systems. In addition to the acute symptoms caused by the disease, there has been a growing number of patients developing long-term sequelae. Among these, hearing problems have gained some prominence.
Case report
This report describes the case of a 52-year-old nurse who, after contracting COVID-19 and recovering from the initial symptoms, developed moderate sensorineural hearing loss in her right ear. Despite treatment with corticosteroids and hyperbaric oxygen therapy, complete recovery was not achieved. The infection caused by SARS-CoV-2 and the resulting auditory sequelae were reported and accepted as an occupational disease.
Discussion / Conclusion
Healthcare professionals, due to their constant exposure to infected patients, are at a higher risk of contracting COVID-19. This case highlights the need to raise awareness about the auditory sequelae of COVID-19 and the importance of recognizing and treating these conditions promptly. Furthermore, it reinforces the necessity for implementing occupational prevention strategies that minimize biological risk in healthcare institutions.
Key-words: COVID-19; Sensorineural hearing loss, Sequela, Healthcare professional, Biological risk, Occupational health.
INTRODUÇÃO
A pandemia COVID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, tem representado um desafio sem precedentes para os sistemas de saúde globais desde o seu surgimento em 2019 (1) (2). A doença provocada por este vírus apresenta um espetro clínico variado, podendo abranger desde casos assintomáticos até quadros graves e potencialmente fatais (3). Além dos sintomas agudos, tem-se observado um número crescente de pacientes que desenvolvem sequelas a longo prazo, caracterizando o que se passou a denominar como síndrome pós-COVID-19 ou long-COVID (2) (4).
A long-Covid é uma condição que se caracteriza por sintomas que persistem por mais de doze semanas após a infeção pelo vírus SARS-CoV-2, sem que essas alterações possam sem explicadas por diagnósticos alternativos (2) (4). Alguns dos sintomas mais comummente relatados incluem fadiga crónica, dificuldades respiratórias, alterações do olfato e/ou paladar, distúrbios do sono, problemas cognitivos (como perda de memória e “névoa mental”), além de sintomas emocionais, como depressão e ansiedade (2) (4).
Entre as possíveis sequelas relatadas da infeção COVID-19, os problemas auditivos têm ganho algum destaque, existindo estudos recentes a apontar que cerca de 8% dos infetados apresentam algum nível de perda auditiva, enquanto 15% relatam acufenos (5). Estes sintomas podem persistir mesmo após a recuperação da fase aguda da doença, sugerindo um possível dano permanente ao sistema auditivo (6).
Os profissionais de saúde, devido à sua exposição constante a pacientes infetados, estão em maior risco de contrair a COVID-19 e, consequentemente, de desenvolver complicações, sublinhando-se a importância de estudar as sequelas neste grupo específico (7).
CASO CLÍNICO
Relata-se o caso de uma enfermeira de 52 anos que exercia funções num hospital terciário durante a pandemia COVID-19. Por quadro clínico que incluía febre, cefaleias, hiposmia e mialgias, realizou zaragatoa orofaríngea cujo resultado foi positivo para SARS-CoV-2. A trabalhadora estava vacinada contra a COVID-19, não necessitando de cuidados hospitalares e realizou tratamento sintomático com paracetamol em SOS.
Uma semana após a confirmação do diagnóstico inicial e subsequente recuperação dos sintomas primários, desenvolveu de forma súbita sintomas auditivos que a levaram a recorrer ao serviço de urgência. Relatava sensação de pressão e plenitude auditiva bilateral, acompanhada de acufeno no ouvido direito. Negava otalgia, otorreia ou vertigem, e não apresentava antecedentes de traumatismo craniano ou medicação habitual. O exame otoscópico não revelou alterações. A avaliação audiológica confirmou uma hipoacúsia neurossensorial moderada nas frequências baixas (Figura 1).
A audiometria vocal demonstrou um limiar de reconhecimento de fala de 35 dB à direita com 95% de discriminação, contrastando com 15 dB à esquerda e 100% de discriminação, sugerindo uma assimetria compatível com hipoacúsia unilateral. O timpanograma era do tipo A bilateralmente, sugerindo função normal do ouvido médio. Apresentava também exame neurológico normal. Realizou estudo analítico e ressonância magnética crânio-encefálica, que não revelaram alterações significativas que pudessem explicar o quadro.
Perante o diagnóstico de hipoacúsia neurossensorial súbita, presumivelmente associada à infeção recente por SARS-CoV-2, a doente foi internada para tratamento intensivo, com corticosteróides sistémicos e intratimpânicos. Não se verificando melhoria significativa, a doente foi encaminhada para oxigenoterapia hiperbárica. Cumpriu um total de vinte sessões, observando-se períodos de melhoria intercalados com agravamento. No final, descrevia uma melhoria franca a nível da audição e acufeno em comparação com o estado prévio, mas sem resolução completa do mesmo. Apesar das intervenções terapêuticas, à data da última avaliação, a doente mantinha surdez neurossensorial no ouvido direito, com acufeno persistente e hipersensibilidade ao som, sugerindo uma possível sequela permanente da infeção por COVID-19.
No regresso ao meio laboral, a trabalhadora foi avaliada em exame ocasional, não tendo sido necessária a adaptação do posto de trabalho, uma vez que não apresentava limitações para desempenhar as tarefas habituais. Foi reforçada a importância da utilização rigorosa dos equipamentos de proteção individual por forma a minimizar o risco de exposição aos agentes biológicos. Considerando que a doença foi contraída no exercício das suas funções profissionais, a infeção por COVID-19 e as suas presumíveis sequelas foram participadas como doença profissional, tendo sido atribuída uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 39,12%.
DISCUSSÃO / CONCLUSÃO
A perda auditiva súbita associada à COVID-19, embora rara, tem sido relatada na literatura, e representa hoje um desafio diagnóstico e terapêutico, especialmente em profissionais de saúde, que apresentam um risco aumentado de contrair a doença. Os mecanismos subjacentes a esta condição ainda não estão completamente compreendidos, mas várias hipóteses têm sido apontadas, nomeadamente a existência de dano direto ao ouvido interno pelo vírus, resposta inflamatória exacerbada do organismo à doença ou efeitos secundários dos medicamentos utilizados no seu tratamento (8) (9) (10).
Nos casos de surdez neurossensorial súbita os corticóides são atualmente a primeira linha de tratamento, havendo estudos que associam o início precoce desta terapêutica com um melhor prognóstico (9) (11). Nesta ótica, torna-se fundamental aumentar a consciencialização e formação dos profissionais de saúde acerca das sequelas possíveis da infeção COVID-19, para que as possam reconhecer e valorizar no imediato.
No caso descrito, o tratamento com corticóides e posteriormente oxigenoterapia hiperbárica melhorou parcialmente as queixas da trabalhadora, mas não foi possível obter resolução completa do quadro. Serão necessários estudos mais extensos sobre os mecanismos fisiopatológicos da long-COVID, especialmente no que concerne às sequelas auditivas que permitam o desenvolvimento de estratégias de prevenção mais eficazes e tratamentos mais direcionados.
A associação temporal entre a infeção e a as alterações auditivas súbitas e o facto de se tratar de uma profissional de saúde e, logo ter um risco biológico acrescido relativamente à população geral, levaram à assunção da doença e suas sequelas como uma doença profissional. Esta certificação permite minimizar o impacto a longo prazo na qualidade de vida e capacidade laboral da trabalhadora, que nestes casos se pode estender além das alterações auditivas em si, abrangendo também aspetos psicológicos importantes, como risco de ansiedade e/ou depressão.
Com este caso realça-se a ideia de que a pandemia de COVID-19 não impactou apenas a saúde imediata da população mundial, uma vez que deixou também um legado de complicações a longo prazo que exigem atenção contínua. Os profissionais de saúde são um grupo em maior risco de desenvolver infeção por SARS-CoV-2 pelo que os serviços saúde ocupacional têm aqui um papel fundamental na implementação de estratégias de prevenção que diminuam o risco biológico das instituições, e impeçam o desenvolvimento de sequelas permanentes para a saúde dos seus trabalhadores. É também da sua responsabilidade o auxílio à reintegração e o acompanhamento contínuo dos trabalhadores afetados no regresso à sua atividade laboral.
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Figura 1 – Audiograma revelando hipoacúsia neurossensorial moderada nas baixas frequências no ouvido direito
(1)João Meneses
Médico Interno de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. MORADA COMPLETA PARA CORRESPONDÊNCIA DOS LEITORES: Serviço de Medicina do Trabalho, Sete Fontes – São Victor, 4710-243 Braga. E-MAIL: joao.miguel.meneses@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Autor principal do artigo, realização da pesquisa bibliográfica e da redação do artigo.
(2)Bruno Sousa
Médico Interno de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Escola de Medicina da Universidade do Minho. 4710-409 Braga. E-MAIL: bruno.amaro.sousa@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Co-autoria. Revisão do manuscrito.
(3)Vânia Teixeira
Médica Interna de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. 4700-267 Braga. E-MAIL: vania.silva.teixeira@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Co-autoria. Revisão do manuscrito.
(4)Álvaro Oliveira
Responsável de Serviço e Assistente Hospitalar de Medicina do Trabalho na Unidade Local de Saúde de Braga. Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior. 4820-512 Póvoa de Lanhoso. E-MAIL: alvaro.andre.oliveira@ulsb.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: Co-autoria. Revisão do manuscrito.