Perea A, Talambas S, Jorge L, Manzano M. Sarna Crostosa em contexto Hospitalar: Abordagem pela Saúde Ocupacional. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional on line. 2019, volume 7, 1-6. DOI: 10.31252/RPSO.14.01.2019
Tipo de artigo: Caso Clínico
Autores: Perea E(1), Talambas S(2), Jorge L(3), Manzano M(4).
INTRODUÇÃO
A escabiose é uma infeção cutânea parasitária causada pelo ácaro humano Sarcoptes scabei variedade hominis1. A fêmea adulta do ácaro deposita os seus ovos na epiderme, onde vive. O ácaro (microscópico) é quase sempre transmitido por contato direto e prolongado pele a pele com a pessoa infetada, podendo esta ser assintomática1. Pode surgir também por contacto com fômites contaminados (por exemplo roupas de cama ou toalhas)2. Pode ter um carácter endémico, ou surgir na forma de surtos e epidemias, sendo que as taxas de prevalência variam de 2,71 por 1000 em países desenvolvidos a 46% (estudo realizado em crianças na Malásia)3.
Os sintomas são causados por uma reação de hipersensibilidade (tipo IV) do hospedeiro aos ácaros e aos seus produtos (saliva, ovos, fezes). O período de incubação varia entre três a seis semanas2,4. O sintoma mais típico é o prurido, geralmente intenso, generalizado e com agravamento noturno.
Clinicamente pode variar de formas ligeiras a ostensivas, como no caso particular da variante crostosa (norueguesa). A forma clássica ocorre em doentes imunocompetentes, cursa com prurido intenso com agravamento noturno, pápulas (eritematosas, pequenas por vezes escoriadas com crostas hemorrágicas à superfície, disseminadas nas regiões periumbilical, cintura, genital, glútea, pregas axilares, digital/ interdigital e região flexora dos pulsos). A cabeça, palmas das mãos e plantas dos pés são geralmente poupados nos adultos. Lesões lineares, finas acastanhadas ou avermelhadas de 0,5-1 centímetro correspondem a sulcos acarinos e são patognomónicas, embora raramente observadas2,4.
A escabiose crostosa ocorre em hospedeiros imunocomprometidos e pode estar associada a prurido reduzido ou ausente3. As lesões consistem em placas eritematosas, fissuradas, mal definidas e generalizadas, cobertas de crostas e escamas2,4. Nesta forma de doença, os ácaros são mais agressivos e numerosos (até dois milhões por paciente) e, consequentemente, as pessoas são muito contagiosas1. Além de ser altamente provável a propagação da doença, através de um contato direto e curto, pele a pele, as pessoas podem transmitir sarna indiretamente pela eliminação de ácaros que contaminam itens como roupas pessoais ou de cama e móveis1.
O diagnóstico é feito através da história clínica (semiologia) e contexto epidemiológico. A confirmação é feita por exame microscópico dos ácaros e/ou ovos2.
A escabiose é uma doença frequente nos cuidados de saúde primários, pediatria e dermatologia4, no entanto assume também importância a nível hospitalar, nomeadamente através do atendimento a doentes no serviço de urgência, consulta ou internamento, sendo possível a transmissão aos trabalhadores que lhes prestam cuidados, especialmente aqueles que realizam manuseamento da pele ou roupas (cama/ pessoais) como os enfermeiros, assistentes operacionais e o pessoal da limpeza.
Para o sucesso terapêutico é essencial garantir a adesão do doente e dos contactos próximos ao tratamento5, que deve ser rápido e agressivo, de modo a evitar surtos de escabiose1.
Os tratamentos farmacológicos recomendados para a escabiose são o creme de permetrina a 5% (1ª linha, indisponível em Portugal), ivermectina oral (1ª linha) e loção de benzoato de benzilo a 25% (tratamento de referência em Portugal)2. Faltam ainda estudos devidamente estruturados que confrontem as diferentes opções terapêuticas, no entanto, uma revisão da Cochrane sugere que, de todos os tratamentos tópicos para escabiose a permetrina é a mais eficaz5. Como tratamentos alternativos existem a loção aquosa de malatião a 0,5%, loção de ivermectina a 1% e creme com enxofre a 6–33%, pomada ou loção2, o mais antigo no mercado. Apesar da permetina poder ser utilizada em crianças, grávidas e mulheres em amamentação não está disponível em Portugal pelo que o tratamento de escolha para este grupo é o precipitado de enxofre6.
Relativamente à terapêutica da sarna crostosa, esta requer escabicida tópico e ivermectina oral2.
Em áreas endémicas e comunidades fechadas (lares, prisões) o tratamento profilático é necessário para controlar uma epidemia. Todos os indivíduos devem ser tratados preventivamente independentemente dos sintomas. A ivermectina oral é mais fácil de administrar que o tratamento tópico tradicional, facilitando o tratamento de grandes populações dado que uma só dose é eficaz, apesar de uma segunda dose após uma semana ser recomendada para potenciar a resposta2.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 85 anos de idade, residente em domicílio próprio com cuidadora, totalmente dependente nas atividades da vida diária, internado num serviço de medicina interna do CHULC, EPE, por traqueobronquite aguda adquirida na comunidade, doença arterial periférica com úlceras necróticas infetadas nos membros inferiores e descompensação de diabetes mellitus não insulino-tratada. Dois dias após do internamento foi solicitada avaliação pela dermatologia por prurido generalizado e intenso em todo o tegumento, descamação e hiperqueratose nas palmas e plantas que não respondiam a medidas de tratamento gerais com aplicação de emolientes regulares. Ao exame objetivo apresentava múltiplas áreas de escoriação com esboço de trajetos lineares na prega flexora do punho e áreas de hiperqueratose em alguns dedos das mãos. Por suspeita diagnóstica de escabiose variante crostosa, procedeu-se a uma colheita de escama para exame direto, sendo este positivo para ovos e ácaros. Iniciou terapêutica tópica com benzoato benzilo diário em todo o tegumento durante 7 dias e Ivermectina (200 micrograma/Kg) nos dias 1, 2 e 8 após o diagnóstico, mantendo a aplicação local de emolientes, com indicação para ser reavaliado pela especialidade de Dermatologia.
Relativamente aos profissionais que tiveram contato direto com o doente, foram instauradas medidas de proteção individual (batas com mangas cumpridas, luvas e máscaras descartáveis) e foram reforçadas as indicações para medidas gerais de higiene. O doente foi mantido em isolamento parcial (no ponto mais distante da porta de entrada/passagem, separado fisicamente de outros doentes, pelo menos um metro, e com cortinas fechadas). Por melhoria clínica teve alta ao sétimo dia de internamento.
A saúde ocupacional foi notificada e solicitou à chefia de enfermagem a listagem de profissionais em contacto com o doente antes do início da terapêutica. A listagem correspondia a vinte e cinco profissionais (14 enfermeiros, dez assistentes operacionais e um médico). Foi pedido benzoato de benzilo à farmácia do centro hospitalar para iniciar tratamento preventivo. O tratamento foi disponibilizado não só aos profissionais, como também as pessoas em contacto próximo, nomeadamente os indivíduos com quem partilham habitação. Elaborou-se um panfleto com informação básica, regras gerais de tratamento da escabiose e de utilização do medicamento.
Cinco dias após o diagnóstico de sarna crostosa, a enfermeira de saúde ocupacional avaliou a situação com a chefia de enfermagem do serviço da medicina, que confirmou que os profissionais tinham recebido o medicamento e/ ou realizado o tratamento. A profilaxia foi bem aceite pelos profissionais de saúde.
Um mês após o diagnóstico não se confirmou em nenhum profissional a existência de queixas e/ ou sintomas relacionados com a doença em questão.
DISCUSSÃO
Apesar da escabiose não ser causa direta de internamento, pode ser um diagnóstico secundário que se manifesta em doentes imunodeprimidos ou em condições socioeconómicas desfavoráveis, tornando-se assim um problema de saúde ocupacional e de saúde pública.
Os profissionais de saúde no contexto hospitalar encontram-se expostos a fatores de risco biológico, neste caso o Sarcoptes scabei, sendo possível considerá-la como uma doença de origem profissional. Apesar de não constar da Lista de Doenças Profissionais (Decreto regulamentar nº 76/2007)7, existe uma relação de causalidade entre a doença que se prova consequência direta da atividade profissional exercida pelo trabalhador.
Por se tratar de uma doença altamente contagiosa, converte-se num risco não só para o próprio doente, como para os doentes com quem partilha o internamento, os profissionais de saúde que o assistem e as famílias/ contactos próximos de todos estes.
As medidas de prevenção básica constituem estratégia de primeira linha, para o controlo das infeções associadas à prestação de cuidados de saúde. Estas medidas devem ser cumpridas sistematicamente, por todos os profissionais que prestam cuidados de saúde, independentemente de ser conhecido o seu estado infecioso8,9. A prevenção vai desde a implementação de medidas coletivas até às individuais, como o controlo na fonte (através do isolamento de doentes conforme a cadeia epidemiológica da infeção), controlo ambiental (ambiente, material, resíduos, roupas, alimentação, desinfestação, transporte de doentes) e medidas do trabalhador, como higienização das mãos, uso racional das barreiras protetoras, equipamentos de proteção individual e (in)formação.
Na situação apresentada foi possível conter a cadeia de transmissão da doença, e evitar a transmissão aos profissionais em contacto. Para que isto aconteça, é importante que exista um protocolo para deteção atempada de doentes e/ ou funcionários infetados, dado que a escabiose crostosa é frequentemente fonte de surtos institucionais1. Deve-se manter um elevado índice de suspeição de que a sarna possa ser causa de um rash cutâneo não diagnosticado, os casos suspeitos devem ser avaliados e os diagnósticos confirmados, especialmente porque na variante crostosa os sintomas diferem daqueles da escabiose comum1. O serviço de saúde ocupacional deve ser notificado logo que possível para que se possa estabelecer uma cadeia de transmissão e que todos os envolvidos sejam atempadamente notificados, tratados e acompanhados1. Esta vigilância mantém-se durante cerca de seis semanas.
Devem ser tratados profilaticamente todos os trabalhadores expostos com contacto em casos de escabiose. O tratamento deve ser vigiado, devendo garantir a aplicação correta do medicamento (tabela 1) e o cumprimento das regras gerais de proteção (tabela 2) por todos os indivíduos envolvidos.
No caso de se detetar a doença num profissional exposto, a saúde ocupacional deve dar inaptidão temporária para o trabalho de forma imediata e fazer a correspondente participação de doença profissional. A infestação é considerada tratada se uma semana após o término do tratamento não houver manifestação de sarna ativa (lesões não ativas, prurido noturno). O prurido pode persistir por até 2 a 4 semanas.2 Portanto, a reavaliação para o regresso ao trabalho poderá ser realizada tendo em conta estes critérios.
CONCLUSÕES
O diagnóstico precoce da sarna e o início rápido do tratamento são fundamentais no controlo da doença. Os mecanismos de comunicação de saúde ocupacional com as diversas áreas hospitalares são fundamentais para evitar a propagação de doenças que são transmitidas por contato direito e que precisam de terapêutica e controlo rápidos. As medidas gerais de prevenção e controlo de infeção protegem não só especificamente a transmissão de escabiose, como também qualquer tipo de infeção hospitalar colaborando para a diminuição da prevalência de infeções nosocomiais e doenças profissionais. Atualmente os tratamentos disponíveis para escabiose em Portugal são de baixo custo, de aplicação relativamente fácil e com elevadas taxas de sucesso o que permite intervir atempadamente e interromper a cadeia de transmissão desta doença.
BIBLIOGRAFIA
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- Chosidow O. Scabies. The New England journal of medicine, 2006. 354:1718-27. Disponível em: https://www.nejm.org/.
ANEXOS
Tabela 1. Como utilizar o benzoato de benzilo
1. Tomar um banho quente durante cerca de 10 minutos e secar convenientemente; |
2. Após banho e secagem, aplicar o produto numa camada fina, uniforme, com massagem ligeira na pele do corpo e deixar secar. |
3. Aplicar uma segunda camada, deixar secar novamente e vestir-se. |
4. Deixar durante 24 horas, tomar outro banho e mudar a roupa do corpo e da cama. |
5. Realizar este procedimento durante 2 dias seguidos2. |
6. Eventualmente repetir após um intervalo de 7 a 10 dias2. |
7. O Benzoato de Benzilo destina-se exclusivamente à aplicação na pele. |
Tabela 2. Regras Gerais do tratamento da Escabiose
1. Devem ser tratados ao mesmo tempo, os parceiros sexuais e pessoas em contacto próximo, nomeadamente os indivíduos que partilham a habitação. |
2. O tratamento deverá ser reaplicado nas mãos se estas forem lavadas (caso seja outra pessoa a aplicar, deverá usar luvas). |
3. Após o primeiro tratamento, as roupas pessoais em contacto com a pele e de cama (toalhas, fronhas, lençóis, cobertores) usadas nas últimas 72 horas, deverão ser lavadas a temperaturas superiores a 50-60ºC. |
4. Caso as roupas não possam ser lavadas, deverão ser mantidas em saco de plástico fechado durante pelo menos 72 horas. |
5. O tratamento tópico (Benzoato de Benzilo) deve ser aplicado em todo o corpo, incluindo pregas interdigitais, debaixo das unhas, umbigo e genitais (com exceção da cabeça, pescoço, olhos, mucosas e canal urinário). |
(1)Elvira Rodríguez Perea
Mestre em Medicina pela Faculdade de Medicina da Escola Juan N. Corpas, Bogotá, Colômbia, com equivalência na Universidade de Lisboa; Interna de Formação específica de Medicina do Trabalho no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, CHULC EPE. Morada para correspondência dos leitores: Alameda de Santo António dos Capuchos, 1169-050 Lisboa. E-mail: elvira.perea@chlc.min-saude.pt.
(2)Sofia Talambas
Mestre em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Interna de Formação Específica de Medicina do Trabalho no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, CHULC EPE. 1169-050 Lisboa. E-mail: sofia.talambas@chlc.min-saude.pt.
(3)Lúcia Jorge
Licenciada em Enfermagem pela Escola Superior de Enfermagem Artur Ravara, Lisboa. Enfermeira do Serviço de Saúde Ocupacional do CHULC, EPE. 1169-050 Lisboa. E-mail: lucia.jorge@chic.min-saude.pt.
(4)Maria João Manzano
Assistente Graduada Sénior de Medicina do Trabalho; Diretora da ASO – CHLC, EPE, Lisboa; Consultora da DGS para a Saúde Ocupacional; Doutorada pela Faculdade de Medicina de Budapeste sobre o papel dos fotorecetores não visuais na regulação dos ritmos circadianos e circanuais. 1169-050 Lisboa. E-mail: mjmanzano@chlc.min-saude.pt.