TIPO DE ARTIGO: Resumo de trabalho divulgado noutro contexto
AUTORES: Santos M,(1) Almeida A.(2)
INTRODUÇÃO
A generalidade dos músicos está exposta a fatores de risco/ riscos profissionais frequentes e/ ou importantes que, na maioria dos casos, são desvalorizados. Dado a música proporcionar muito prazer aos seus executantes, por vezes, estes não valorizam as suas queixas, nem fazem uma associação de causa/ efeito, podendo até considerar que tal é a consequência natural do seu maior empenho.
Contudo, estes profissionais tradicionalmente não costumam usufruir dos serviços de uma equipa de Saúde Ocupacional, apesar da legislação em vigor para qualquer atividade profissional remunerada. Para além disso, a legislação também exige que os fatores de risco laborais sejam devidamente estudados e quantificados (como o estudo do “ruído”, nas diversas posições da orquestra) e a realização de exames auxiliares de diagnóstico que permitam a vigilância da saúde. Em função do nível de “ruído” e das alterações do audiograma, a equipa de Saúde Ocupacional deverá determinar se a repetição do estudo e do exame mencionado se manterá no mínimo exigido pela legislação ou se existem justificações técnicas para encurtar essa mesma periodicidade, de forma a garantir um ambiente de trabalho o mais seguro possível, devendo a equipa de Saúde Ocupacional ao longo do processo sugerir/ discutir medidas de proteção coletiva e, caso estas não sejam executáveis no momento ou suficientes, acrescentar depois as medidas de proteção individual adequadas.
Em função da experiência clínica dos autores, em todas as empresas que colaboram e colaboraram ao longo destes anos, nunca foram solicitados a prestar qualquer apoio nesta área profissional, pelo que supõem que os músicos constituem um dos setores profissionais que, por norma, não cumpre a legislação em vigor, pelo que será de esperar que a generalidade das equipas de Saúde Ocupacional não detenha experiência prática nesta área.
CONTEÚDO
1.1.Alterações otorrinolaringológicas
Genericamente os músicos estão expostos a ruído intenso e prolongado, resultante não só do seu instrumento, mas também dos restantes colegas, quer durante os ensaios, quer concertos. A generalidade dos investigadores concorda que a perda auditiva é proporcional à intensidade e cronicidade da exposição ao ruído, apesar de existir obviamente uma grande variabilidade na suscetibilidade individual. Alguns defendem que determinados géneros de música (como o rock) atingem mais decibéis pelo que, nestes profissionais, os danos serão maiores. Para além disso, à medida que a idade avança, surge sempre alguma deterioração da acuidade auditiva em todos os indivíduos, mas também esta está sujeita a grande variabilidade genética.
Ainda assim, curiosamente, os músicos no geral aparentam ter uma menor perda da acuidade auditiva do que outros trabalhadores expostos à mesma intensidade de ruído, noutros setores profissionais; em diversos artigos tal é justificado através de um eventual estilo de vida mais saudável (a nível de tabagismo, tensão arterial e lipidemia), melhor nível socio/ economico/ cultural e por uma audição inicial mais apurada, bem como uma grande tolerância emocional ao ruído contínuo, dado ser justamente o objetivo do ato, sentindo prazer pelo som produzido (nunca o considerando como ruído incomodativo, originado por terceiras pessoas e em proveito de uma entidade empregadora com a qual já detêm divergências, como poderá ocorrer no setor industrial). Para além disso, apesar de as pausas serem raras entre ensaios e concertos, talvez ainda sejam mais numerosas e/ ou extensas que noutros meios laborais; neste ambiente também não existem as substâncias ototóxicas que caraterizam muitos meios fabris.
Para alguns instrumentos musicais está descrita uma hipoacusia assimétrica, devido à desigual exposição ao ruído entre os ouvidos, como acontece nos violinistas, por exemplo. Nos ensaios, mesmo com um único instrumento de qualquer orquestra clássica, podem ser atingidos níveis superiores a 100 decibéis; a bateria, por sua vez, pode atingir os 120 decibéis. A relembrar que, em termos legislativos laborais, na generalidade dos países, não se considera seguro existirem exposições superiores a 85 decibéis, nível a partir do qual é obrigatório serem tomadas medidas de proteção coletiva (para reduzir a produção do ruído) e, se não forem suficientes, deverá ser usada a proteção auricular individual, com coeficiente de atenuação adequado às tarefas.
Entre os profissionais de saúde ocupacional é associado facilmente o ruído à hipoacusia/ surdez; contudo, ao longo dos últimos anos, têm-se desenvolvido projetos de investigação que, apesar de ainda não serem alvo de consenso alargado, associam o ruído a muitas outras alterações de saúde, como a hipertensão arterial, taquicardia (aumento da frequência cardíaca), doença isquémica coronária (angina de peito, enfarte); bem como a alterações respiratórias (episódios de asma mais frequentes a graves), obstétricas (maior risco de aborto), do sono (insónia, sonolência diurna) e emocionais (depressão, ansiedade).
A nível de medidas de proteção coletiva algumas orquestras distribuem os seus elementos por níveis diferentes, de forma a isolar parcialmente os instrumentos com mais decibéis. Existem também barreiras acústicas que podem ser colocadas nas orquestras mas, obviamente, o objetivo final, para o público e músicos, pode ficar alterado. De qualquer forma existem músicos que tocam vários instrumentos em diferentes locais da orquestra, pelo que se torna mais difícil quantificar a exposição sonora destes profissionais. De realçar que alguns instrumentos podem ser tocados de forma silenciosa, pelo que, pelo menos em alguns ensaios, se diminuiria a exposição global ao ruído.
O uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), ou seja, pelo menos tampões auriculares, é também controverso entre estes profissionais; pois em função do grau de atenuação sonora, a simples conversa entre colegas pode ficar prejudicada, bem a audição do próprio instrumento musical e dos restantes colegas. Por outro lado, dada justamente a importância profissional da audição, os músicos podem se preocupar mais com esta questão, relativamente a um operário fabril, por exemplo. Para além disso, quanto maior for a perda auditiva, maior será a dificuldade em usar proteção auricular, dado que a audição ficará cada vez mais limitada. Na escolha da proteção auricular são levados em conta os critérios de grau de atenuação, distorção, velocidade e facilidade de colocação/ remoção, bem como a sua visibilidade para o público, durante as atuações. Aliás, alguns músicos consideram aceitável o uso de proteção auricular durante parte dos ensaios, mas nunca durante os concertos. Alguns estudos referem também que estes profissionais preferem ocupar o seu tempo de lazer com atividades silenciosas, para atenuar os danos do ruído.
Para além disso, muitos eventos musicais envolvem outros profissionais, também expostos ao ruído (como engenheiros de som e auxiliares de montagem dos espetáculos, entre outros).
Por fim, ainda a nível de alterações otorrinolaringológicas, a elevada pressão intraoral exigida pelos instrumentos de sopro pode causar disfunção, que se pode manifestar, por exemplo, apenas ao tocar o instrumento musical (o oboé é o que mais frequentemente causa esta condição).
1.2.Alterações músculo- esqueléticas
A generalidade dos músicos apresenta posturas mantidas, forçadas e/ ou assimétricas, movimentos repetitivos e mobilização de cargas (ou seja, o seu instrumento musical); a incidência, prevalência e intensidade das lesões músculo- esqueléticas (LMEs) são diretamente proporcionais ao número de horas de treino. Poderemos mencionar como exemplos específicos contributivos para as LMEs o habitual desvio ulnar, abdução dos dedos e flexão do pescoço, típicos dos violinistas; os pianistas, por sua vez, danificam frequentemente vários músculos digitais e do pulso, apesar que, nos instrumentos mais recentes, as teclas exigem menor pressão para serem tocadas – nestes são assim muito frequentes as tendinites, o síndroma do túnel cárpico ou radial e desvio ulnar bilateral; os flautistas apresentam geralmente queixas no ombro direito, devido à abdução e rotação externa. No clarinete, oboé e english horn, o polegar e o indicador suportam os instrumentos em carga estática, por exemplo.
A destacar também que, se ao longo dos séculos a maioria dos instrumentos passou a ser constituída por matéria-prima mais leve, outros, por sua vez, tornaram-se mais complexos, pesados e lesivos. Para agravar ainda mais a situação, a maioria dos músicos toca desde criança e durante décadas, por vezes para além da idade da reforma da generalidade das profissões.
Os instrumentos que exigem uma pressão oral elevada podem danificar muscularmente as estruturas responsáveis pelo movimento, força e coordenação dos lábios (o instrumento com mais casos descritos é o trombone). Por vezes, o repouso entre ensaios ou durante uma temporada não é suficiente.
As LMEs, genericamente, são mais frequentes no pescoço, dorso e membros superiores; alguns autores também as descrevem como estando mais associadas ao sexo feminino (o que poderá ser parcialmente explicado pelas influências socioculturais, hormonais ou simplesmente pela desigual distribuição de tarefas domésticas e familiares na maioria dos casais).
Globalmente, alguns autores estimam que estas possam ocorrer em cerca de 87% dos músicos. Muitas vezes, devido à noção de trabalho em equipa e/ ou por ambição pessoal, estes profissionais não realizam repousos ou tratamentos, mesmo quando a semiologia é já exuberante; sendo nestas circunstâncias frequente o consumo de analgésicos. Para além disso, nem todos realizam exercícios de aquecimento ou relaxamento. Existem ainda situações em que os músicos têm outro trabalho (por questões de sustentabilidade económica), pelo que podem acumular alguns riscos profissionais. A instabilidade monetária pode também impossibilitar o acesso adequado a exames de diagnóstico e/ ou tratamento (sobretudo em países com um sistema nacional de saúde pouco desenvolvido ou maioritariamente privatizado), pelo que as lesões podem ser progressivamente agravadas.
Os músicos com instrumentos de cordas apresentam risco acrescido de compressão neuronal devido a hipertrofia muscular ou tendinosa, estagnação circulatória (pelas posturas repetitivas, mantidas e/ ou forçadas) e consequente anoxia (ou seja, diminuição de oxigénio).
A ansiedade associada às atuações geralmente acompanha-se de atividade eletromiográfica mais intensa, que também agrava os danos músculo- esqueléticos.
Para além disso, uma vez que a generalidade dos músicos passa muito tempo a treinar música, pucos praticam desporto, de forma a manter o corpo tonificado e robusto, mais capaz de se defender das agressões laborais.
1.3.Alterações dermatológicas
Alguns instrumentos que exigem contato direto com a pele, sobretudo quando intenso, prolongado e/ou com fricção, podem originar áreas de hiperpigmentação, eritema, inflamação ou até zonas com pústulas e pápulas. É o caso da região cervical e mandíbula (para os violinistas), do esterno, escroto ou joelho (para os violoncelistas), na mama (para os guitarristas) e do queixo (para flautistas); esta situação torna-se mais frequente quando os instrumentos contêm níquel, alguns produtos de acabamento (por exemplo, de coloração) ou outros para aumentar a funcionalidade dos instrumentos (como é o caso dos utilizados nas cordas), capazes de desencadear estas reações em músicos suscetíveis. Adeptos de instrumentos de sopro podem também apresentar queilite (alterações no canto da boca) e/ ou eritema do lábio superior, associada ou não a hipersensibilidade (por exemplo, o clarinete, trompete e o saxofone são bastante mencionados neste contexto). Por vezes, trocando o material do bucal para ouro ou plástico a reatividade diminui.
Devido a movimentos repetitivos e sujeitos a alguma pressão, alguns músicos apresentam calosidades (sobretudo nos dedos); em alguns instrumentos de corda também são frequentes as lesões ungueais.
1.4.Alterações neurológicas
Estão descritos casos de alterações da motricidade e sensibilidade nos lábios dos músicos que utilizam instrumentos de sopro, por alterações no nervo trigémeo (como é o caso do clarinete).
1.5.Alterações oftalmológicas
A utilização de instrumentos de sopro e/ ou que oferecem elevada resistência (como o oboé, trompa e trompete) aumentam a pressão intraocular/ glaucoma, diminuindo eventualmente a acuidade visual.
1.6.Alterações odontológicas
Os músicos que usam instrumentos de sopro também apresentam, com alguma frequência, alterações odontológicas.
1.7.Alterações cardiovasculares
Num estudo de instrumentalistas de trompa verificou-se que quase metade dos avaliados apresentava um pace-maker cardíaco natural transitório quando tocava. Já a correlação entre tocar instrumentos de sopro e a hipertensão arterial não é consensual entre investigadores.
A frequência cardíaca durante a interpretação musical é mais elevada do que a que seria justificável apenas considerando o esforço físico envolvido e, ainda assim, substancialmente diferente entre ensaios e concertos, devido eventualmente à ansiedade associada aos últimos.
Por sua vez, quando se executam manobras de valsalva frequentes e prolongadas é possível a ocorrência de um Acidente Isquémico Transitório (AIT)- existem alguns casos descritos para trompetistas.
1.8.Alterações emocionais
A ansiedade secundária à atuação em público é muito frequentemente mencionada na bibliografia consultada; surge um aumento da frequência cardíaca, da sudorese e da atividade eletromiográfica. Aliás, estima-se que cerca de 20% dos músicos consuma betabloqueadores antes dos concertos, para diminuir estas alterações motoras secundárias à ansiedade; pelos motivos óbvios, a situação agrava-se nas atuações a solo.
1.9.O envelhecimento do músico
A diminuição da capacidade cardiovascular implica maior dificuldade em executar movimentos vigorosos e/ ou repetitivos. A dor, tremor e a rigidez articular diminuem a motricidade fina e a coordenação. A lentificação e a diminuição da capacidade de memorizar dificultam a aprendizagem de novas pautas e/ ou execução das antigas. A diminuição da elasticidade muscular (nomeadamente a nível perioral) diminui a capacidade de tocar instrumentos de sopro; as próprias alterações dentárias (por reabsorção óssea) alteram a capacidade de adaptação ao bucal; aliás a diminuição da produção de saliva já diminui o conforto e mobilidade da língua, necessários a uma boa articulação das notas. Para além disso, independentemente da exposição ao ruído, simplesmente a idade a passar já diminui a acuidade auditiva que, por si só, diminui a capacidade de ouvir o seu instrumento musical e os restantes da orquestra. De forma igualmente importante a diminuição da acuidade visual pode dificultar a leitura das pautas.
CONCLUSÕES
Em função dos riscos laborais existentes, graves e abundantes em algumas situações, a prevalência não tanto de acidentes de trabalho, mas sobretudo de doenças profissionais, pode ser preocupante. Contudo, estes profissionais tradicionalmente não costumam usufruir de forma completa dos serviços de uma equipa de Saúde Ocupacional, apesar da legislação em vigor para qualquer atividade profissional remunerada. Em função da experiência clínica dos autores e da bibliografia consultada, poder-se-á supor que se as entidades empregadoras e os próprios músicos ficassem mais sensibilizadas para estas questões legais e médicas, usufruiriam de mais saúde, produtividade e qualidade técnica, no presente e para o futuro, dadas as limitações impostas por parte das doenças profissionais associadas.
BIBLIOGRAFIA
Santos M, Almeida A. Orquestrando Saúde Ocupacional?!… Revista Segurança, 2013, março- abril, 213, 30-34.








