Couto C, Rodrigues A, Roque A, Eiras G, Ribeiro I, Oliveira C, Carvalhas J. Bexiga Hiperativa- a propósito de um Acidente de Trabalho. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2024, 17: esub0451. DOI: 10.31252/RPSO.15.06.2024
OVERACTIVE BLADDER – ABOUT AN ACCIDENT AT WORK
TIPO DE ARTIGO: Caso Clínico
Autores: Couto C(1), Rodrigues A(2), Roque A(3), Eiras G(4), Ribeiro I (5), Oliveira C(6), Carvalhas J(7).
RESUMO
Introdução
A bexiga hiperativa caracteriza-se por hiperatividade do detrusor e ocasiona incontinência urinária de urgência. Os acidentes de trabalho têm um impacto negativo na saúde dos trabalhadores e consequentemente na produtividade das empresas e economia global. O trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes. A responsabilidade pela reparação e demais encargos decorrentes cabe ao empregador, que é obrigado a transferi-la para entidades legalmente autorizadas para o efeito (seguradoras).
Caso Clínico
Neste caso clínico descreve-se um acidente laboral numa trabalhadora de 57 anos, assistente operacional de uma instituição pública de saúde. A sinistrada sofreu queda em piso molhado, que resultou em rotura dos músculos adutores das coxas, com agravamento de patologia pré-existente (incontinência urinária de esforço corrigida cirurgicamente). Alguns anos após o acidente, a sinistrada foi submetida a nova intervenção cirúrgica uro-ginecológica na seguradora, com agravamento da incontinência de esforço já existente e surgimento de incontinência urinária de urgência, tendo desenvolvido, nesse contexto, bexiga hiperativa.
Discussão/Conclusão
No caso clínico em questão, foi reconhecido pela companhia de seguros o nexo de causalidade entre o sinistro ocorrido e as lesões desenvolvidas. As consequências ultrapassam a esfera laboral, com impacto na qualidade de vida, lazer e dimensão sexual da trabalhadora. A reparação por acidentes de trabalho em Portugal incide essencialmente na perda da capacidade de ganho. Os serviços de saúde ocupacional têm um papel fundamental tanto na prevenção dos acidentes, como no acompanhamento dos sinistrados após regresso ao trabalho. O médico do trabalho e as companhias de seguro têm um papel fundamental na reintegração profissional, pelo que a sua comunicação e vínculo devem ser reforçados.
ABSTRACT
Introduction
Overactive bladder is characterized by overactivity of the detrusor and causes urge urinary incontinence. Accidents at work have a negative impact on the health of workers and consequently on the productivity of companies and the global economy. The worker and his/her family members are entitled to compensation for damage resulting from it. The responsibility for the repair and other charges arising from accidents at work lies with the employer, who is obliged to transfer it to entities legally authorized for this purpose (insurance companies).
Case Report
In this clinical case, an accident at work is described in a 57-year-old woman, an operational assistant at a public health institution. The victim suffered a fall on a wet floor, which resulted in a rupture of the adductor muscles of the thighs, with aggravation of a pre-existing pathology (surgically corrected stress urinary incontinence). A few years after the accident, the victim underwent a new urogynecological surgical intervention at the insurance company, with worsening of existing stress incontinence and emergence of urge urinary incontinence, having developed, in this context, overactive bladder.
Discussion/Conclusion
In this case report, the insurance company recognized the causal link between the accident at work and the injuries that developed. The consequences of this accident go beyond the work sphere, with an impact on the quality of life, leisure and sexual dimension of the worker. The reparation of damage by work accidents in Portugal focuses essentially on the loss of earning capacity. Occupational health services play a key role both in the prevention of accidents at work and in the follow-up of victims after returning to work. Occupational physicians and insurance companies play a key role in professional reintegration, so their communication and bonding should be strengthened.
INTRODUÇÃO
A bexiga hiperativa é definida por um conjunto de sintomas como urgência urinária, geralmente acompanhada de polaquiúria e noctúria, com ou sem incontinência urinária, após exclusão de patologias ou condições metabólicas que possam explicar estes sintomas (1). A sua prevalência é elevada, afetando cerca de 12% da população adulta e apresenta um impacto negativo significativo na qualidade de vida (2).
O diagnóstico de bexiga hiperativa é feito com base na história clínica, exame físico e análise de urina para descartar infeção do trato urinário ou outras condições que possam resultar em sintomas semelhantes (3). Existe uma variedade de patologias neurológicas e alterações anatómicas do trato urinário que podem causar ou exacerbar a hiperatividade do detrusor. Dessa forma, é fundamental uma revisão pormenorizada da história clínica, nomeadamente para doenças neurológicas (esclerose múltipla, lesão da medula espinal, Doença de Parkinson, Acidente Vascular Cerebral), patologias endócrinas (diabetes mellitus ou diabetes insipidus) e cirurgias pélvicas prévias (procedimentos anti-incontinência, correção de prolapsos) (3).
O estudo urodinâmico está reservado para casos complicados, nomeadamente quando existe uma cirurgia anti-incontinência prévia e casos refratários ao tratamento de primeira e segunda linha (3). O tratamento de primeira linha engloba a terapia comportamental e o tratamento fisiátrico com fortalecimento muscular do pavimento pélvico. O tratamento de segunda linha é constituído por medicações orais (agentes anti-muscarínicos e agentes beta-adrenérgicos). Nos casos refratários, pode ser ponderada a injeção intravesical de toxina botulínica, a neuromodulação do sacro e a estimulação percutânea do nervo tibial (3).
Os acidentes de trabalho (AT) têm um impacto negativo na saúde dos trabalhadores e consequentemente na produtividade das empresas e economia global. Segundo a lei n.º 98/2009, AT refere-se àquele que se verifique no local e no tempo de trabalho, produzindo lesão corporal, perturbação funcional ou doença, da qual resulte redução na capacidade de trabalho, de ganho ou morte. Segundo a mesma lei, o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos AT. A responsabilidade pela reparação e demais encargos cabe ao empregador, que é obrigado a transferi-la para entidades legalmente autorizadas para o efeito (seguradoras). Esta proteção engloba tanto a prestação dos cuidados de saúde para restabelecer o estado de saúde e a capacidade de trabalho (e de ganho), como o pagamento de eventuais indemnizações por incapacidades temporárias e permanentes (4).
A avaliação pericial médico-legal no âmbito do Direito do Trabalho tem como objetivo a avaliação das sequelas decorrentes de determinado AT e estimar a incapacidade resultante das mesmas, a qual condiciona perda da capacidade de ganho. Neste sentido, a discussão e conclusões periciais centram-se na determinação do nexo de causalidade e da data de cura/consolidação médico-legal, bem como na atribuição de danos temporários e permanentes. O sinistro pode assim resultar em incapacidade temporária ou permanente para o trabalho. A primeira pode ser parcial ou absoluta; a segunda pode ser parcial, absoluta para o trabalho habitual ou absoluta para todo e qualquer trabalho. Decorridos 18 meses consecutivos desde o AT, a incapacidade temporária converte-se em permanente, podendo este prazo ser prorrogado pelo Ministério Público, até a um máximo de 30 meses, caso se verifique que o sinistrado se mantém em tratamento (4). Relativamente aos danos permanentes, estes correspondem aos danos após a data de consolidação médico-legal e incluem:
– Incapacidade Permanente Parcial (IPP): corresponde a uma perda parcial e permanente da capacidade de ganho, devido a uma ou mais disfunções, secundárias às sequelas resultantes do acidente, expressa em percentagem. É quantificada tendo em conta a globalidade das sequelas, sendo concretizada através da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI) por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (5). No caso de múltiplas sequelas, este valor é calculado utilizando a Regra de Balthazard ou da Capacidade Restante (exceto nas situações devidamente expressas na TNI);
– Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH): ponderada em casos em que os défices sequelares se afiguram incompatíveis com a realização da atividade laboral habitual do sinistrado;
– Incapacidade Permanente Absoluta para todo e qualquer trabalho (IPA): ponderada em casos em que os défices sequelares se afiguram incompatíveis com a realização de qualquer atividade laboral.
O empregador deve assegurar a reabilitação profissional do trabalhador e a adaptação do posto de trabalho, que sejam necessárias ao exercício das funções (4).
CASO CLÍNICO
Este caso reporta a uma mulher, de 57 anos, assistente operacional de uma instituição pública de saúde. Durante o seu trabalho, presta cuidados a doentes, nomeadamente posicionamento, transferências, higienização e auxílio na alimentação. Também realiza movimentação manual de cargas para reposição de material e higienização de espaços. Como antecedentes pessoais de relevo, apresenta incontinência urinária de esforço corrigida cirurgicamente em 2013 (colocação de sling uretral), com total resolução das queixas urinárias. De referir que a sinistrada sempre apresentou índice de massa corporal dentro dos valores normais de referência, sem critérios diagnósticos de síndrome metabólico, à exceção de dislipidemia corrigida com estatina. Como antecedentes ginecológicos/obstétricos, a sinistrada apresentava quatro partos eutócicos.
Em julho de 2015 sofreu AT com queda em pavimento molhado, ocorrendo abdução forçada dos membros inferiores, com rotura dos músculos adutores das coxas. Foi acompanhada na companhia de seguros, tendo-lhe sido atribuído dois meses de ITA, em que ficou em repouso total no domicílio. Posteriormente iniciou processo de recuperação fisiátrica. No entanto, cerca de um a dois meses após ter iniciado tratamentos, começou com perdas urinárias para pequenos a médios esforços, com necessidade de usar pensos diários. Realizou estudo urodinâmico, tendo-lhe sido proposta cirurgia para correção da incontinência urinária de esforço, que recusou. Desta forma em fevereiro de 2016 teve alta da companhia de seguros com IPP de 5%.
Em 2018, pelo agravamento das perdas urinárias relatado pela trabalhadora, foi pedido reabertura do processo de AT à companhia de seguros, pelo médico do trabalho da instituição. Em julho de 2018 foi submetida a nova cirurgia uroginecológica. Refere, no entanto, que após a cirurgia apresentou agravamento das queixas, com perdas urinárias abundantes, de componente misto (ou seja, tanto para pequenos esforços como queixas de urgência urinária), com necessidade de uso de fraldas. Desde a cirurgia realiza oxibutinina (anticolinérgico) e mirabegron (agonista beta-3 adrenérgico), sem qualquer melhoria. Por ser refratária à medicação também realizou alguns tratamentos com toxina botulínica intravesical de seis em seis meses, com pouca melhoria dos sintomas, tendo desenvolvido retenção urinária aguda com necessidade de algaliação e infeções do trato urinário de repetição. De seguida, encontram-se os últimos meios complementares de diagnóstico que foram realizados em 2022:
– Estudo Urodinâmico: “…hiperatividade do detrusor associado a urgência urinária e incontinência (OAB wet)”;
– Ecografia Renal e Vesical: “os rins apresentam normal topografia e dimensões, contornos regulares, com manutenção da diferenciação parênquima-sinusal e normal espessura do parênquima. Não se observam processos expansivos renais ou peri-renais, sinais de litíase, nem dilatação pielo-calicial, bilateralmente. Bexiga moderadamente distendida, sem aparentes alterações parietais ou do conteúdo. Volume pré-miccional de 40 cc (refere incontinência durante o exame, com a compressão vesical) e pós miccional de 7 cc”;
– Uretrocistoscopia: “uretra sem alterações; bexiga de grande capacidade, trabeculada, com divertículos de colo largo. Não se identificam lesões suspeitas. Não se identificam erosões nem se identifica visualmente material protésico. Meatos em posição ortotópica. Contração vesical (aparentemente involuntária) durante o exame”.
Apesar do tempo decorrido desde a reabertura do processo do AT, a sinistrada mantém tratamentos na companhia de seguros, na especialidade de Urologia. Para além disso, o caso encontra-se ainda em resolução no Tribunal de Trabalho, devido a discordância entre as partes no valor da IPP. A saúde ocupacional da instituição em questão tem mantido acompanhamento regular da sinistrada. Desde a reabertura do processo de AT em 2018, pelo que a ficha de aptidão para o trabalho da trabalhadora apresenta condicionalismos relativamente às cargas e esforços.
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
Neste caso clínico, foi reconhecido pela companhia de seguros o nexo de causalidade entre o AT ocorrido e as lesões desenvolvidas, nomeadamente com o agravamento da incontinência urinária de esforço bem como com o aparecimento de novo da incontinência urinária de urgência por hiperatividade do detrusor, provável consequência da intervenção cirúrgica uro-ginecológica decorrida no ano de 2018. Segundo a lei nº 98/2009, a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada. Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento subsequente a um acidente de trabalho e que seja consequência de tal tratamento.
As consequências deste AT ultrapassam claramente a esfera laboral, com impacto na qualidade de vida, lazer e dimensão sexual da trabalhadora. Em Portugal, a reparação do dano por AT incide essencialmente na perda da capacidade de ganho. Na opinião da autora, esta abordagem é redutora, pelo que a reparação deveria ser integral, valorizando a pessoa em todas as suas esferas. Este caso necessitará muito provavelmente de assistência vitalícia, nomeadamente de acompanhamento frequente pela especialidade de Urologia. Com o avançar da idade, prevê-se agravamento do quadro clínico. Os serviços de saúde ocupacional têm um papel fundamental tanto na prevenção dos AT como no acompanhamento dos sinistrados após regresso ao trabalho. O médico do trabalho e as companhias de seguro têm um papel fundamental na reintegração profissional, pelo que a sua comunicação e vínculo devem ser reforçados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Bo K, Frawley H, Haylen B, Abramov Y, Almeida F, Berghmans B et al. An International Urogynecological Association (IUGA)/International Continence Society (ICS) joint report on the terminology for the conservative and nonpharmacological management of female pelvic floor dysfunction. Neurourology and Urodynamics. 2017; 36(2): 221-244. Doi: 1002/nau.23107.
- Irwin D, Milsom I, Hunskaar S, Reilly K, Kopp Z, Herschorn S et al. Population-based survey of urinary incontinence, overactive bladder, and other lower urinary tract symptoms in five countries: results of the EPIC study. European Urology. 2006; 50(6): 1306-1314. Doi: 1016/j.eururo.2006.09.019.
- Gormley E, Lightner D, Faraday M, Vasavada S. Diagnosis and treatment of overactive bladder (non-neurogenic) in adults: AUA/ SUFU Guideline Amendment. The Journal of Urology. 2015; 193(5): 1572-1580. Doi: 1016/j.juro.2015.01.087.
- Assembleia da República. Lei nº 98/2009, de 4 de setembro – Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais. Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/98-2009-489505.
- Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro – Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais. Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/352-2007-629107.
(1)Carla Couto
Médica Interna de Medicina do Trabalho. Morada completa para correspondência dos leitores: Serviço de Saúde Ocupacional ULS EDV; Rua Doutor Cândido Pinho, CP: 4520-220 Santa Maria da Feira. E-MAIL: carlac.couto@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: pesquisa e elaboração de manuscrito
(2)Andrea Rodrigues
Médica Especialista em Medicina do Trabalho; Responsável de Serviço. Código postal cidade. E-MAIL: andrea.t.rodrigues@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: revisão do manuscrito
(3)Alexandra Roque
Médica Especialista em Medicina do Trabalho. Código postal cidade. E-MAIL: alexandra.roque@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: revisão do manuscrito
(4)Gonçalo Eiras
Médico Interno de Medicina do Trabalho. Código postal cidade. E-MAIL: joao.eiras@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: revisão do manuscrito
(5)Inês Ribeiro
Médica Interna de Medicina do Trabalho. Código postal cidade. E-MAIL: ines.ribeiro@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: revisão do manuscrito
(6)Catarina Oliveira
Médica Interna de Medicina do Trabalho. Código postal cidade. E-MAIL: catarina.t.oliveira@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: revisão do manuscrito
(7)Jacinta Carvalhas
Enfermeira do Trabalho. Código postal cidade. E-MAIL: jacinta.carvalhas@ulsedv.min-saude.pt
-CONTRIBUIÇÃO PARA O ARTIGO: revisão do manuscrito