OCCUPATIONAL HEALTH AND AGRICULTURE
TIPO DE ARTIGO: Resumo de trabalho divulgado noutro contexto
AUTORES: Santos M(1), Almeida A(2).
INTRODUÇÃO
Foi há cerca de 12 mil anos que a humanidade, no período neolítico, em algumas zonas do planeta, descobriu que podia cultivar algumas plantas, para além da sua simples recolha. Presentemente, a agricultura é o emprego mais frequente mundialmente (ocupa cerca de 70% dos trabalhadores); no entanto, se nos EUA constitui 10% da população ativa, na Ásia esse valor é da ordem dos 80%; contudo, também é uma das atividades profissionais mais perigosas, considerando quer os acidentes de trabalho, quer as doenças profissionais. Os agricultores constituem cerca de metade da população mundial que vive abaixo do limiar da pobreza (sendo tal situação mais frequente na Ásia e África). Na América do Norte e Europa Ocidental este setor evoluiu bastante, suportado pela tecnologia; nas restantes zonas do planeta predomina ainda a agricultura de subsistência. Para além disso, o aumento da população mundial implica uma sobrecarga na procura dos alimentos.
LEGISLAÇÃO RELACIONADA
Tendo em conta a legislação existente na generalidade dos países, facilmente se entende como esta atividade escapa subtilmente à ação do Técnico de Higiene e Segurança (pois a grande maioria das empresas têm menos que dez trabalhadores e, independentemente do número de funcionários, apesar de tudo, esta atividade profissional não está diretamente assinalada na lista de profissões de risco elevado); escapando também ao Médico do Trabalho (através da utilização utópica do médico assistente, especialista em Medicina Geral e Familiar, não tendo este qualquer formação específica na área).
PRINCIPAIS FATORES DE RISCO/ RISCOS OCUPACIONAIS ABORDADOS NA BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Agentes químicos: Pesticidas
A necessidade de aumentar a produtividade fez com que, mundialmente, se usem cada vez mais estes produtos. A sua banalização pode aumentar as resistências das pragas e, consequentemente, torna-se necessário usar doses superiores e/ ou misturas mais potentes. Estima-se que, mundialmente, as intoxicações sejam cada vez mais frequentes, correspondendo a cerca de cinco milhões de mortes por ano (englobando as exposições voluntária/ suicídio e ocupacional). O contato pode ocorrer pelas vias cutânea, respiratória ou oral (no contexto ocupacional esta última é menos frequente).
Estes produtos apresentam toxicidades aguda e crónica. Em linhas gerais, a primeira carateriza-se por cefaleia, irritação ocular, mialgia (dor muscular), alterações respiratórias, diaforese (sudorese excessiva), náusea, vómito, diarreia, parestesias (alterações da sensibilidade), tremor, ataxia (desequilíbrio), epigastralgia (dor no estômago), miose (contração pupilar), taquipneia (aumento da frequência respiratória) e ptialismo (aumento da salivação). Cerca de 35% dos agricultores que lidam com pesticidas refere parte desta semiologia (conjunto de sinais e sintomas). Por sua vez, a exposição crónica poderá associar-se a polineuropatia (alterações na condução neurológica), dermatite (alterações cutâneas), alterações comportamentais e até cancros, nomeadamente da próstata e linfoma não- Hodgkin; contudo, outros investigadores não encontraram tal associação e/ou justificam esta diversidade de resultados em função de diferentes suscetibilidades individuais. Acredita-se que os pesticidas induzem o stress oxidativo que, por sua vez, perturbará a normal constituição e reparação do DNA. Alguns estudos associam estes agentes também ao aumento da prevalência da asma e doenças pulmonares restritivas em agricultores, mas tal não é consensual; bem como a eventuais alterações imunológicas. De realçar que os residentes numa área geográfica até cerca de 25 kms do ponto de aplicação terão algum contato com o produto.
Os principais fatores associados a uma maior toxicidade são a ausência de equipamentos de proteção individual (EPIs), clima tropical, baixo nível cultural, desconhecimento da concentração do produto, armazenamento incorreto, uso de misturas, idade mais jovem e consumo de álcool. Em contrapartida, as principais recomendações para diminuir o risco de toxicidade são a organização de formações/ programas de treino, monitorizar o consumo (individual e coletivo), restringir consumos abusivos (tal como se faz nos países mais desenvolvidos), vigilância médica dos profissionais envolvidos, EPIs adequados e disponíveis e diminuição do uso de misturas. A maioria dos agricultores que lida com pesticidas não usa EPIs ou então utiliza-os de forma bastante incompleta e/ ou esporádica, sobretudo nos países menos desenvolvidos. Para além disso, nestes países é frequente o uso de pesticidas mais tóxicos e antigos (porque são mais baratos). Estes agricultores, obviamente, também nem sequer se apercebem da necessidade de proteger os seus conviventes.
Dentro dos EPIs há que destacar então o uso de luvas, fato, máscara, botas, avental e óculos; as roupas protetoras diminuem o contato cutâneo em 50 a 95%, em função do modelo, forma de usar e material.
Além disso, a possibilidade de remover as roupas e calçado de trabalho, não as levar para casa e tomar banho/ lavar as mãos antes de sair da exploração agrícola ou, quando muito, mal chegue a casa, diminui o risco para o trabalhador e seus familiares. Os próprios veículos de transporte podem estar contaminados. A exposição costuma ser mais intensa nas estufas. Para além disso, alguns pesticidas transformam-se (já na planta) em compostos ainda mais tóxicos.
Dentro dos pesticidas, o grupo mais utilizado é o dos organofosforados. Um dos doseamentos mais acessíveis para avaliar a exposição a estes é a colinesterase que, em situações positivas, está inibida. Outros investigadores também recomendam o doseamento da acetilcolinesterase. Em algumas zonas dos EUA é habitual proceder a estas análises, por rotina, antes e durante a aplicação destes agentes. A diminuição de 50% na atividade da colinesterase é geralmente indicadora de toxicidade aguda. A inibição da mesma por carbamatos (outro tipo de pesticidas) é mais lábil, reversível e de duração mais curta. Aliás, se a exposição destes for interrompida, a semiologia regride em até 24 horas.
Relativamente à relação existente entre os pesticidas e a reprodução, acredita-se que estes consigam alterar a circulação e biodisponibilidade das hormonas sexuais; localmente e/ ou por atingimento da hipófise; apesar de controverso. O número de espermatozoides (total e viáveis) poderá diminuir, podendo também surgir alterações morfológicas. As fertilidades masculina e feminina podem ficar comprometidas. O risco de aborto está aumentado em grávidas expostas diretamente ou através dos conviventes e o risco revelou-se superior quando o primeiro trimestre coincidiu com a aplicação o produto.
A associação entre a exposição pré-natal a pesticidas e o crescimento fetal apresenta resultados contraditórios na literatura; alguns defendem gestações discretamente mais curtas e/ ou atingimento do crescimento fetal. Noutras investigações ainda há menção a maior risco de malformações orofaciais, hemangiomas, alterações no sistema nervoso central (como espinha bífida e hidrocefalia) e no sistema musculo- esquelético- mas tal não é consensual.
Em comparação com os adultos, as crianças, dada a sua menor estatura, são mais suscetíveis a estes agentes; para além disso, estas muito frequentemente permanecem no chão e colocam objetos na boca, pelo que a sua exposição poderá ser superior à dos adultos não agricultores.
Outros agentes químicos
Também se encontra na literatura referência às emissões dos motores a diesel utilizados neste setor profissional, que estão classificadas como “provavelmente cancerígenas em humanos”.
No contexto dos gases tóxicos, por exemplo, destacam-se os óxidos de nitrogénio (originados por fermentação); a concentração pode atingir um nível letal em apenas algumas horas de armazenamento, sobretudo na ausência de ventilação eficaz e/ou uso de EPIs adequados.
Os fertilizantes, por sua vez, são constituídos por alguns produtos que, quando aquecidos, poderão ter propriedades explosivas.
Os rodenticidas (usados para controlar os roedores) são agentes anti-coagulantes que, apesar de eventualmente fatais para os humanos também, parte deles dispõe de antídoto eficaz.
Risco de acidentes/ utilização de máquinas
Considera-se que a agricultura apresenta um risco de acidentes mortais seis vezes superior, quando comparada com a generalidade das indústrias, nos EUA. Na Dinamarca, por exemplo, esse valor foi o dobro do estimado para a construção civil.
Cerca de cem crianças morrem anualmente nos EUA por acidentes em explorações agrícolas, sendo que cerca de 22000 são alvo de acidentes não fatais. Entre os primeiros é dado particular destaque aos tratores (59%); secundariamente existem também situações relacionadas com animais e quedas. Outro estudo mencionou que 19% dos acidentes mortais e hospitalizações por acidentes agrícolas globais atingem crianças- aliás a sociedade rural tem mais permissividade perante o trabalho de menores.
Ainda assim, acredita-se que os dados estatísticos (sobretudo os relacionados com as doenças profissionais e acidentes não fatais) pecam por defeito, dada a ausência/ ineficácia da higiene, segurança e saúde no trabalho ou de qualquer entidade que assuma esse registo com rigor, na generalidade dos países.
Comparando com outras profissões, os agricultores geralmente trabalham mais horas (o que implica maior fadiga) e, com frequência, sozinhos, o que poderá aumentar o risco de acidente. A mecanização diminuiu alguns riscos e melhorou as condições de trabalho, mas também fez despoletar riscos novos.
Para além disso, na agricultura há também menor cumprimento da idade de aposentação, pelo que é mais frequente neste setor a prática laboral de pessoas muito idosas, sendo os acidentes fatais mais prevalentes nos extremos de idade.
-O exemplo dos tratores
Os acidentes relacionados com estes veículos (capotamentos, atropelamentos, colisões) asseguram um terço dos acidentes fatais nos EUA, neste setor. Também na Austrália, por exemplo, estes veículos detêm destaque equivalente; contudo, enquanto que a maioria dos acidentes profissionais diminuiu nas últimas décadas neste país, no caso da agricultura, os valores mantiveram-se mais ou menos constantes e cerca de quatro vezes superiores aos valores das atividades industriais. As situações de capotamento são muito mais frequentes do que noutros veículos, devido ao facto de a estrutura perder o seu centro de gravidade com muita facilidade, em solos não nivelados. Na maioria das situações os acidentes estão associados ao cansaço, falta de (in)formação e/ou excesso de confiança (por vezes potenciado pelo álcool). Os sistemas de segurança variam desde estruturas simples (como arcos articuláveis a contornar o condutor), até cabines integrais sofisticadas que, além de protegerem contra lesões causadas por acidentes, também podem atenuar temperaturas extremas (os vidros fumados e estores conseguem diminuir cerca de 14ºC), ruído, vibrações e poeiras. Contudo, estas cabines também podem contribuir para dificultar a fuga do condutor, em caso de perigo. Para além disso, a existência de janelas panorâmicas, painéis de controlo melhor desenhados e simbolizados, assentos mais ergonómicos, cintos de segurança não removíveis, apoio de costas e braços ajustáveis, suspensão e espelhos retrovisores aumentam o conforto e diminuem o risco de acidente.
Entre os géneros, os acidentes são mais usuais no sexo feminino; elas constituem cerca de 43% da mão-de-obra agrícola e destas, 44% afirmou conduzir o trator pelo menos um dia por ano. A maioria aprendeu tal por volta da segunda década de vida, tendo como instrutor o cônjuge e nunca cursos de formação. Apesar de a maioria guiar mais dias por ano, este ato constituía uma ação minoritária nas suas ocupações agrícolas (geralmente muito variadas), domésticas, familiares e/ou ocupacionais (extra- agricultura). Além disso, muito poucas vêm o uso desta máquina como perigoso; talvez por isso apenas um terço afirme usar cinto de segurança. Também se verificou que, em alguns casos, o marido conduzia um trator mais novo e mais seguro, enquanto que a esposa ficava com modelos mais arcaicos. Para além disso, não é raro que as crianças e adultos recebam boleia dos tratores e/ou sejam até as crianças a conduzir o veiculo (às vezes com apenas quatro ou cinco anos de idade). É também frequente que as crianças acompanhem com proximidade o trabalho dos adultos e/ ou mesmo executem algumas tarefas.
Lesões musculo-esqueléticas
As alterações músculo-esqueléticas são também bastantes frequentes neste setor, sendo de salientar as atividades executadas com os membros elevados acima dos ombros, bem como o manuseamento de cargas, movimentos repetitivos, flexões, torções e quedas.
Risco de incêndio
Este risco também não será de descurar, na medida em que a agricultura usa vários equipamentos elétricos, além da existência de combustíveis acumulados e outros produtos químicos inflamáveis.
Ruído
Num estudo neozelandês quantificou-se que os agricultores estavam expostos em média a níveis na ordem dos 87 db(A), mas praticamente nenhum usava proteção. Aliás, alguns tratores facilmente atingiam valores ainda superiores- daí a hipoacusia (perda de audição) ser razoavelmente frequente. Além do isolamento social e depressão que a surdez pode acarretar, ela mesma pode aumentar o risco de acidentes de trabalho. Outro estudo norte-americano quantificou que cerca de 55 a 72% dos agricultores sofriam de hipoacúsia, existindo várias tarefas onde também se excediam os decibéis permitidos, nomeadamente a criação de gado, facilmente associada à agricultura. A destacar que a diminuição da audição se verificou em todas as idades, incluindo adolescentes, progredindo posteriormente.
Radiações e desconforto térmico
Neste contexto destacam-se os ultravioletas (que contribuem para patologia neoplásica e envelhecimento da pele), a luz visível (associada à degeneração da retina e mácula), bem como os infravermelhos (que aumentam o risco de alterações da córnea e do cristalino, nomeadamente cataratas).
Dado serem frequentes as tarefas ao ar livre, há que realçar também a exposição a temperaturas extremas e o desconforto térmico implicado.
Risco de doenças respiratórias e imunoalérgicas
Os agricultores estão frequentemente expostos a poeiras orgânicas e inorgânicas (minerais), tendo maior prevalência de semiologia respiratória, diminuição da função pulmonar e maior mortalidade neste contexto. Destacam-se as pneumoconioses e as doenças pulmonares crónicas obstrutivas (enfizema e bronquite). Dentro das poeiras orgânicas (mais prevalentes), devem-se mencionar os fragmentos de insetos, excrementos de animais, microrganismos, endotoxinas e pólenes. A toxicidade é obviamente superior em locais fechados.
Eventual risco oncológico
Existem meta-análises desenvolvidas sobre os agricultores que encontraram maiores prevalências de alguns cancros (nomeadamente pele, estômago, cérebro, linfoma não- Hodgkin, doença de Hodgkin, mieloma múltiplo, leucemia, próstata e lábio). Na eventual etiologia poder-se-ão considerar a exposição aos organofosforados, fertilizantes, solventes, combustíveis, poeiras e radiação solar.
CONCLUSÕES
Seria muito importante que os agricultores tivessem acesso a uma equipa de Segurança, Higiene e Saúde, capaz de atenuar as incidências dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Para além disso, estes profissionais poderiam ainda dar um ótimo contributo para o estudo da atividade, uma vez que a maioria dos artigos publicados peca por ter amostras reduzidas e/ou pouco representativas da população para a qual se pretendem generalizar os resultados; não existindo também muitos dados sobre a situação nacional.
BIBLIOGRAFIA
Santos M. Um breve olhar sobre a Agricultura… Revista Segurança. 2013, setembro-outubro, 215: 18-22.
(1)Licenciada em Medicina; Especialista em Medicina Geral e Familiar; Mestre em Ciências do Desporto; Especialista em Medicina do Trabalho; Presentemente a exercer nas empresas Medicisforma, Clinae, Servinecra e Serviço Intermédico; Diretora Clínica da empresa Quercia; Diretora da Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional on line; Endereços para correspondência: Rua Agostinho Fernando Oliveira Guedes, 42 4420-009 Gondomar; s_monica_santos@hotmail.com.
(2)Mestre em Enfermagem Avançada; Especialista em Enfermagem Comunitária; Pós-graduado em Supervisão Clínica e em Sistemas de Informação em Enfermagem; Docente na Escola de Enfermagem, Instituto da Ciências da Saúde- Porto, da Universidade Católica Portuguesa; Diretor Adjunto da Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional on line; aalmeida@porto.ucp.pt
Santos M, Almeida A. Agricultura e Saúde Laboral. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional on line. 2016, volume 2, s79-s84. DOI:10.31252/RPSO/01.08.2016